Braille: avanço e fortalecimento do sistema é responsabilidade de todos

Por Regina Fátima Caldeira de Oliveira*

 

Quando falamos em tecnologia, pensamos estar falando de alguma coisa muito nova e sofisticada, mas não é bem assim.

Na verdade, a preocupação com a tecnologia começou quando o homem pré-histórico percebeu que precisava garantir e facilitar a sua vida na Terra.
A partir daí, começou a desenvolver tecnologias que tornassem mais fáceis a suaalimentação, o seu trabalho, a sua segurança, as suas manifestações culturais,, o seu lazer, enfim, o seu dia a
dia.

Mas a grande conquista tecnológica, aquela que permitiu que a humanidade iniciasse de fato a sua história, aconteceu há cerca de 5 mil anos e foi a invenção da escrita. Por meio dela, o homem passou a registrar o seu passado e a contribuir com o seu futuro e isso foi fundamental para que ele chegasse ao seu atual estágio de evolução.

Nos primeiros milênios, os textos eram manuscritos e por essa razão chegavam somente a um número muito pequeno de pessoas.

E isso só começou a mudar com a chegada de uma outra grande tecnologia, a prensa de Gutenberg, inventada em 1455. Com a produção de textos impressos, a escrita e a leitura se tornaram
mais populares, o que resultou em um grande avanço científico, artístico e filosófico.

Mas e as pessoas cegas, quando entraram na História? Infelizmente, demorou muito mais do que seria desejável. Os primeiros registros de tentativas de desenvolvimento de um método de escrita e leitura para pessoas cegas datam da Idade Média.

Embora desenvolvidas ora por pessoas cegas ora por pessoas
videntes bem intencionadas, todas essas tentativas falharam por se basearem na escrita comum.

Na verdade, a grande conquista tecnológica das pessoas cegas só aconteceu no final de 1824, com a apresentação da primeira versão daquele que viria a ser conhecido como Sistema Braille.

E o que é o Sistema Braille e por que ele tem tantas vantagens sobre os outros sistemas?
– É um sistema universal.
– é um sistema natural de escrita e leitura.
– É um sistema lógico.
– Pode ser aplicado a todas as áreas do conhecimento.
– Permite a representação de imagens.
– É genial no que se refere à leitura, pois cada caractere pode ser
reconhecido com um único toque da polpa do dedo indicador.

Agora, vamos falar um pouco mais sobre cada uma dessas propriedades do Sistema Braille.

Quando dizemos que é um sistema universal, significa que ele pôde ser
adaptado a todos os alfabetos do mundo. Recentemente, foi adaptado
à escrita guarani no Paraguai.

Quando dizemos que é um sistema natural de leitura, significa que é o único sistema que permite o contato direto da pessoa cega com os textos escritos, acionando a mesma área do córtex cerebral que é acionada com a leitura visual. A alfabetização de uma criança cega por meio do Sistema Braille é
imprescindível para o seu desenvolvimento neuropsicomotor. Outras tecnologias
podem ser utilizadas como apoio, tais como tablets e computadores, mas é somente lendo textos impressos ou por
meio de uma linha braille ou outro display que essa criança vai aprender ortografia e toda a simbologia das diferentes áreas do conhecimento.

Quando dizemos que é um sistema lógico, significa que as suas 63 combinações
foram pensadas para serem memorizadas com facilidade e para acompanharem a evolução da escrita. Graças a essa lógica, hoje já podemos contar com o braille
de 8 pontos, usado em impressoras e em linhas braille, o que permite um número
bem maior de combinações.

Quando dizemos que o braille se aplica a todas as áreas do conhecimento,
significa que ao longo de quase dois séculos vem se adaptando à representação da matemática, da química, da física, da fonética, da música e até mesmo da mais moderna das ciências, que é a informática.
Quando dizemos que o Sistema Braille permite a representação de imagens, isso significa que ele amplia imensamente o universo das pessoas cegas, pois permite que elas possam tocar formas e representações que lhes seriam totalmente inacessíveis pela falta da visão.

Quando dizemos que o braille é genial por poder ser lido com a parte mais sensível do dedo indicador, significa que, quando uma criança cega utiliza corretamente as técnicas de leitura, o seu aproveitamento escolar é muito maior, o que amplia as suas oportunidades de educação e de profissionalização. Com a progressão escolar, ela pode e deve utilizar outros recursos, mas somente o braille lhe permite a leitura eficaz de gráficos, tabelas, mapas, equações matemáticas e estruturas químicas.

Agora, mais um pouquinho de história antes de abordarmos as responsabilidades em relação ao Sistema Braille.

Por volta de 1870, teve início a produção de livros em braille no Brasil, no Imperial Instituto dos Meninos Cegos, hoje, Instituto Benjamin Constant. Estes livros eram, porém, destinados aos alunos do próprio instituto.

Até meados do século XX, as crianças e jovens cegos estudavam em escolas especializadas e, por falta de livros, muitos desses estudantes copiavam, em regletes, os textos de que precisavam.

Muitas vezes, por falta de papel, essas cópias eram feitas em revistas velhas, sendo os textos ditados por familiares ou por voluntários.

Isso representava um grande sacrifício, mas possibilitava que eles tivessem mais desenvoltura na escrita e na leitura.
Em 1946, o início das atividades da Fundação para o Livro do Cego no Brasil, hoje, Fundação Dorina Nowill para Cegos, impulsionou a produção de textos em braille, transcritos artesanalmente por voluntários e também impressos por máquinas estereotipadoras.

Aos poucos, esses livros foram chegando a todas as regiões do país, o que também coincidiu com o ingresso de estudantes com deficiência visual nas escolas regulares.

Na 2ª metade do século XX, muitas novas tecnologias foram sendo desenvolvidas para facilitar a produção de textos em braille e, consequentemente, aumentar a sua oferta.

Os livros falados e digitais, os leitores de tela, a internet, os smartphones e tantos outros recursos são hoje os grandes aliados das pessoas cegas, facilitando a sua educação, a sua profissionalização, a sua cultura e o seu lazer.

No entanto, em vez de serem recebidas como aliadas do Sistema Braille, essas tecnologias têm sido sempre saudadas com a célebre frase: “Pronto, agora chegou o fim do braille”.

Esse e outros fatores têm gerado em todo o mundo um fenômeno que muitos chamam de desbraillização. E se essa realidade não for mudada, em breve todas as crianças que nascerem cegas ou que perderem a visão na primeira infância, se tornarão analfabetas funcionais.

E a quem cabe a responsabilidade de impedir essa grande tragédia?

– Às famílias, que devem conhecer e se orgulhar do sistema natural de escrita e leitura utilizado por seus filhos cegos, participando da sua alfabetização assim como participam da alfabetização de seus filhos que enxergam.
– Dos professores, que precisam não apenas conhecer o Sistema Braille, mas estar
conscientes da sua importância na verdadeira educação da criança cega e preparados para ensiná-lo de maneira a ser de fato eficaz, o que inclui, entre tantas outras práticas, o uso correto das técnicas de leitura.
– De toda a comunidade escolar, para que os livros em braille não sejam vistos como algo folclórico e, sim, como um recurso capaz de oferecer às crianças cegas as mesmas
oportunidades de aprendizado oferecidas às crianças que enxergam.
– Das universidades, especialmente aquelas responsáveis pela formação de professores, que devem dar ao ensino do Sistema Braille o espaço de que ele realmente necessita para que seja entendido e difundido como imprescindível à alfabetização de crianças cegas.
– Das instituições especializadas, que devem conscientizar os pais ou responsáveis sobre essa importância, incluindo-os nas atividades relacionadas ao braille de maneira lúdica, destruindo atitudes negativas e preconceituosas.
– Dos governantes, que devem garantir a oferta de livros didáticos de qualidade às crianças cegas, adaptados de acordo com as suas necessidades, ao mesmo tempo em que devem tornar acessíveis a essas crianças as modernas tecnologias que já vêm sendo utilizadas em várias partes do mundo, que são as linhas braille e outros displays.
– Dos produtores de livros, que, ao elaborarem o conteúdo de livros didáticos, devem ter plena consciência de que este conteúdo será compartilhado por públicos com diferentes necessidades, buscando assim eliminar todo e qualquer tipo de discriminação.
– Dos editores e revisores de textos em braille, que devem conhecer profundamente as normas de adaptação e transcrição de textos neste sistema.
– Dos especialistas e estudiosos do Sistema Braille, para que possam mantê-lo sempre em dia com a evolução da escrita em todas as áreas do conhecimento.

Se cada um desses segmentos assumir de fato a sua responsabilidade, o braille poderá ser oferecido e aproveitado em toda a sua genialidade, como um sistema que por quase 200 anos vem permitindo que milhões de pessoas cegas
vivam com independência e autonomia.

E para encerrar, digo, sobre o Sistema Braille, que hoje vemos estampado em joias, camisetas, obras de arte, que ele não se torne um objeto de vitrine que muitos podem ver, mas poucos são estimulados a tocar!

Regina Fátima Caldeira de Oliveira
Coordenadora de Editorial e Revisão da Fundação Dorina Nowill para Cegos; Membro do Conselho Mundial do Braille; Membro do Conselho Ibero-Americano do Braille; Representante da ONCB na Comissão Brasileira do Braille

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